Aviso de irmão: se você não se preparou antes, NÃO comece de Saint Jean! Eu sofri muito com esse caminho. A mochila continuava pesada, e as subidas íngremes me cansaram ainda mais. Senti uma adaga em cada ombro e meus pés latejavam.
Do meu diário, 19/05/06
Dia um
Acordei às 6h, 1h no Brasil, e me arrumei como peregrino de primeira viagem: empastelei meus dedos dos pés com Hipoglós, conselho da podóloga para evitar umidade e garantir melhor deslizamento entre os dedos, prevenindo o atrito e bolhas. Coloquei a meia fina de algodão, conselho da maioria dos sites, a meia grossa de caminhada e a bota com a palmilha de silicone. Me sentia pisando em nuvens.
Gerti bateu na porta do quarto para ver se eu estava pronto para tomarmos café. Chegando ao albergue de Marie, entreguei a ela o saco com as minhas coisas, para que distribuísse aos peregrinos que necessitassem. Claro que ela ficou impressionada com meu exagero. Depois disse, num francês misturado com espanhol, que precisávamos nos alimentar muito bem, pois esta etapa era a mais difícil do caminho. É… ela NÃO estava enganada.
Nos despedimos da simpática hospitaleira e seguimos rua acima, pois eu queria começar exatamente do começo: La Porte Saint-Jacques. Um morador nos viu subindo e chamou a atenção. Apontava para baixo e gritava “Santiago!”, apontava para cima e gritava “Roma!”. Expliquei em gestos que iria tirar umas fotos, pra não enrolar tanto, e seguimos.
Eu e Gerti iniciamos às 8h nosso Caminho de Santiago a partir de Saint Jean Pied de Port. Fiquei apaixonado pela rue de Citadelle – uma típica cidade medieval, cercada por gigantescos muros de pedra.
Subidas, descidas, subidas íngremes e mais subidas. Andar nos Pirineus, com uma mochila acima do peso e sem NENHUM preparo físico – tá bom, não foi por falta de falar –, é uma PENITÊNCIA. Acho que paguei os pecados de pelo menos uma vida passada… e acho que ainda tenho pecados de muitas vidas passadas além da minha para pagar…
Quase na metade desta etapa, vi algo que me emocionou: havia o alto de uma montanha toda gramada, algo enorme, e no meio dela uma árvore solitária, toda retorcida e desfolhada. Lembrei de minha avó, que quando via algo assim, sorria e dizia que a árvore parecia uma bailarina. Foi aí que lembrei que amanhã seria seu aniversário, se estivesse viva, e de repente tive a sensação de estar sendo abraçado por ela. Aí, de repente, caiu a ficha: CARALHO! ESTOU FAZENDO O CAMINHO DE SANTIAGO, MESMO! TUDO É REAL! Chorei que nem criança olhando para a árvore bailarina e, quando voltei a caminhar, vi Gerti sentada uns metros à frente me esperando.
Este trajeto é simplesmente MARAVILHOSO! A paisagem é fenomenal, provavelmente para nos compensar de tanto sofrimento… hehehe. Percebi que estava realmente fora de forma quando fomos passados por um casal de idosos, todos dispostos. Conversando rapidamente, descobrimos que eles vinham andando desde ZURIQUE. Já peregrinavam há 8 semanas. Bom, eu andava há algumas horas, e ainda estava entendendo a distribuição de peso das alças da minha mochila. Foi quase no final da caminhada do dia que descobri que, ao puxar umas alças que estavam próximas à minha cintura, elas aliviavam divinamente a dor nos meus ombros. Isso deu mais energia para continuar esse trajeto tão cansativo.
Já em terras espanholas, passamos por uma pequena floresta fechada e a pista estava tão enlameada que tivemos que andar com dificuldade entre as árvores. Foi assim que tropecei em um galho gigante. Eu olhei para ele, ele olhou para mim, e vi que havia encontrado o meu cajado, o companheiro que marcaria meus passos e ajudaria a me escorar em terrenos difíceis estrada afora. Quebrei alguns galhos (sério, ele devia ter mais de 3 metros) e cheguei em um formato bizarro de mais ou menos 2 metros. A casca incomodava um pouco na mão, então enquanto eu andava, tentava fazer alguns ajustes com a minha faca.
Depois de 11 cansativas horas, chegamos a Roncesvalles um tanto atrasados, mas conseguimos camas na pousada da Colegiata. Após o banho – quente –, fomos para a missa de bênção dos peregrinos. Me senti na época medieval: um igreja românica totalmente feita de pedra, os peregrinos de pé e, no final da missa, um belo canto gregoriano. Me emocionei muito com isso… foi como voltar para casa.
Saímos da missa esfomeados diretamente para o restaurante. Foi lá que realmente vi que o Caminho de Santiago é patrimônio mundial. Na minha mesa havia um brasileiro – eu, claro –, duas austríacas, um russo, dois americanos, dois espanhóis, uma suíça e uma mexicana. Uma babel fantástica para todos se entenderem… Com o andar da conversa, eles perceberam que eu ria das piadas em inglês e em espanhol, daí pediram para eu traduzir tudo. Eu, com o meu parco inglês, traduzia para os outros o que era dito em espanhol e vice versa, com o meu “portunhol”. Todos rimos, e eu vi que a minha cara de pau era vencedora, hehehe.
Menu do peregrino: um prato de macarrão com molho de tomate, um prato com batatas fritas e uma truta saborosíssima, um iogurte, e pão e vinho à vontade.
Depois disso chegamos ao albergue bem cansados, mas antes de dormir eu tentei tirar mais algumas coisas da mochila, que ainda estava insuportável. No albergue há umas prateleiras com diversas coisas deixadas lá. Você pode pegar o que quiser e deixar o que quiser. É uma forma de ajudar peregrinos sem provisões ou equipamentos (algo muito legal no Caminho, o altruísmo). Dessa vez deixei a calça de moletom (a partir de agora não teríamos dias tão frios), mais uma camiseta, um dos gorros, e uma lata que eu havia levado para organizar miudezas. Cada grama a menos valia a pena no desespero dos meus ombros e pés.
Um Flanax, emplastro nos ombros, massagem nos pés, e boa noite.
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