Dia Quarenta
Acordamos com o nascer do sol para nosso último dia como peregrinos no Caminho de Santiago. Nos despedimos de Marta A. e começamos a criar coragem para começar a andar: Javi e Gemma seguiram na frente, eu e Peter, logo em seguida. Deixamos Corcubión para trás e enfrentamos subidas em montanhas, mais descidas cheias de pedras, e cuidado redobrado para não tropeçar novamente.
Depois de um tempo, a estrada resolveu nos levar de novo para o mar. Andando na areia, encontramos um bar de hotel 5 estrelas à beira-mar e resolvemos parar para o café da manhã. Os ricos frequentadores do hotel nos olhavam de rabo de olho, não entendendo as mochilas, os cajados, as botas, as roupas encardidas e suadas, e nós não demos a mínima, afinal já estávamos acostumados com essa reação há muito dias, graças à nossa condição inalienável de peregrinos.
Continuamos andando cada passo bem devagar, pois faltava muito, muito pouco! Ao vermos Finisterre ao longe, Gemma abraçou Javi e voltou a chorar. Deixamos os dois ali e seguimos andando até encontrar um bar, que devia estar a 1 km do albergue de Finisterre. Ali bebemos, rimos, almoçamos, bebemos mais um pouco, reencontramos Maurício, bebemos mais, reencontramos a garota japonesa que vimos lá n’O Cebreiro (17/06/06), enquanto um cara com cabelo azul raspava a sua cabeça no meio da rua, e rimos, brindamos, caímos na água, voltamos a beber para nos secar e rir mais um pouco, e relembrar histórias engraçadas, e chorar lembrando histórias tristes, e beber e rir de novo até tomarmos a coragem de levantar acampamento e enfrentar o fim da nossa longa e inesquecível peregrinação.
Chegamos ao albergue e ganhamos nossas Finisterranas – o certificado de nossa peregrinação a pé de Santiago de Compostela até aqui –, nos instalamos, tomamos um banho, separamos nossas roupas “especiais” num saquinho e começamos a andar até o nosso destino: mais 3 km até o farol do Cabo Fisterra, o Cabo da Morte, o Fim do Mundo. Existem várias histórias sobre a vinda até Finisterre após a peregrinação a Santiago, e a que nos trouxe aqui foi a de queimar alguma peça de roupa que usamos durante a peregrinação a fim de nos purificar para uma nova vida, na volta para casa.
Passamos o marco zero do nosso Caminho de Santiago (a foto que abre esta publicação), beiramos o prédio do farol e encontramos o lugar perfeito nas pedras para iniciar o nosso ritual. Gemma pegou o chapéu de Dani, colocou-o na cabeça e disse que ele seria o nosso filtro: bastava deixar nossos pensamentos nele para ficarem aqui, para sempre. Gemma, Javi, Peter e eu ficamos um tempo com o chapéu, transferindo nossas aflições, medos, angústias, decepções, tristezas e tudo o mais que gostaríamos de queimar. Pedimos o mesmo para nossos parceiros de caminhada que não estavam ali conosco, afinal, dentre centenas e centenas de pessoas que nos acompanharam nesses quarenta dias, apenas nós quatro estávamos ali, juntos, representando a família.
O chapéu de Dani foi a ignição. Pouco a pouco, nossas roupas foram colocadas na fogueira. Pouco a pouco, nossas expressões ficaram diferentes. Tudo havia acabado… Conseguimos andar até aqui, apesar de todas as dificuldades. Aprendemos muito, descobrimos muito sobre nós mesmos, estávamos renascendo de nossas cinzas, realizados. Era um momento feliz, mas estávamos tristes. Afinal, tudo havia acabado…
Vimos o pôr-do-sol dali. A lua apareceu e choramos um pouco mais. Nos abraçamos como amigos, como baregrinos, como cúmplices, como peregrinos, como família. Ali sabíamos que nada desse mundo conseguiria tirar essa experiência de nossas cabeças. Com ela caminharemos para sempre, e também com um pedacinho do coração de cada um de nós, para essa lembrança ser nossa para sempre.
Voltamos para a realidade no escuro, 3 km noite adentro na estrada até Finisterre. Em uma praça encontramos Eduardo e sua companheira preparando uma parrillada. Nós, eles e muitos outros brindamos, bebemos vinho, rimos, choramos, rimos de novo. Cambaleando, encontramos o caminho do albergue e fomos todos dormir.
1 Comment