Dia Treze
Acordei relativamente bem. Até os pés esquentarem, é um parto. A primeira colocada de pé no chão é a pior, parece coisa de “faquir ao contrário”: é no chão que estão os pregos. Fui pegar a tornozeleira que havia levado para segurar um pouco o pé mais zoado (era difícil escolher qual), daí lembrei que havia dado a Katrin, 7 séculos atrás (dia 24/05). A noção de tempo aqui é muito maluca, mesmo… Tudo passa tão devagar, que você nem sabe mais quanto tempo faz que começou a caminhar. É assim que aquela teoria maluca da Karen, no jantar em Estella, se encaixa perfeitamente: passado, presente e futuro caminhando tão próximos que você não sabe mais se está em 2006, 2206 ou 1306.
Eu e Karen saímos de Villafranca Montes de Oca às 8h, incentivados pelos outros integrantes do The Fellowship of the Camino. Rasmus gritou “go, caminuístas!”, e rimos todos. Andamos um pouco mais devagar que os outros, para meus pés aguentarem. O tempo estava meio com cara de chuva, ficava mais frio a cada metro para cima, e era só subida. A paisagem mudou radicalmente, pois era mato com árvores altas dos dois lados. Era boa aos olhos essa variação, depois de tanto feno e uva. Era uma floresta maravilhosa, mas o cuidado redobrava no chão, pois havia muitas pedras soltas e buracos por todos os lados. Paramos para comer umas 10h da manhã. Fiz um sanduíche (aqui chamam de bocadillo) com patê de fígado de porco (de uma lata que duraria 3 dias no máximo, aberta fora da geladeira, hehehe), fatias de queijo e pêssegos secos.
Chegamos em San Juan de Ortega por volta das 12h, e encontramos Robert e Rasmus no único bar do pueblo. Conversamos um pouco e fui me despedir de Karen. Nós dois choramos muito, pois agora temos certeza que não vamos nos encontrar novamente, graças a essa minha parada aqui. Foi bem triste ver minha hermana sumir ao horizonte. Num momento, ela virou para trás e viu que eu ainda olhava, e deu pra ver que os dois continuavam a chorar. Ah, as despedidas do Caminho de Santiago… Me despedi de Robert, Rasmus e Karin do mesmo jeito, como se eu fosse ficar aqui para morrer, mas dessa vez não houve choro, pois eu sentia que os veria novamente, algum dia. Bom, comigo se desfazia 20% do Fellowship of de Camino, uma pulseira ficaria para trás, mas eu realmente precisava desse descanso para renovar minhas forças. E foi exatamente o que eu fiz.
O hospitaleiro chegaria para abrir o albergue lá pras 16h, então fiquei sentado com os pés em outra cadeira, bebendo vinho em uma mesa na rua, em frente ao ÚNICO bar da cidade, que era ao lado do ÚNICO albergue da cidade, que era ao lado da ÚNICA igreja da cidade, que eram as ÚNICAS coisas da cidade, hehehe. San Juan de Ortega é meio quarteirão, e é maravilhosa! Entrei um pouco na igreja e descobri que San Juan de Ortega estava enterrado em uma cripta subterrânea. Não tinha ninguém ali para acender a luz, então peguei minha lanterna e comecei a descer as escadarias. De repente, senti um vento gelado vindo de baixo, de um lugar subterrâneo, que aparentemente não tinha motivo para ter outra entrada. Então resolvi bater em retirada e vê-lo em uma outra oportunidade.
O albergue é confortável, mas não tem nem cozinha nem água quente, então fiz uma massagem nos meus pés, reenfaixei o pé direito e coloquei uma meia para esquentar. Aqui está frio, também, deve ser a altitude. Como amanhã será praticamente descida, provavelmente vai esquentar. Desci e fiquei sentado na mesa da rua na frente ao bar, para aproveitar o solzinho e esperar a hora do jantar. Comprei um vinho de Burgos, o El Castilejo, e fiquei umas duas horas escrevendo minhas memórias destes 13 primeiros dias.
Por volta das 19h começaram a atender para o jantar, e provei uma das especialidades típicas de Burgos: morcillas – encontrei um vídeo de como elas são preparadas, caso você tenha estômago. 😀 É um tipo de paio, de cor negra, com arroz, sangue e gordura de porco. Adorei! Depois do jantar fiquei conversando com uma americana, Maria, de Nevada, e dois alemães, Günter e Klaus, todos às voltas de seus 50 anos. Foi uma conversa muito boa. Dividi meu vinho com eles. Maria comprou um, depois foi a vez de Günter trazer outra garrafa.
Subi para dormir às 21h, e sem banho. Estava muito frio pra isso. Amanhã é outro dia e haverá outro albergue, então tomarei banho por lá. Tenho a impressão que esta será uma agradável noite de sono restaurador. San Juan de Ortega não está lá no escuro gelado de sua cripta, e sim aquecendo cada peregrino com sua incansável ajuda.
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