Memórias destes 13 primeiros dias
É gostoso caminhar ouvindo o assovio do vento,
O Canto dos pássaros, o mexer das folhas
O voar dos insetos, o barulho do cajado
Mantendo o ritmo da caminhada, e as pegadas
Feitas no mato, na terra, no barro, no asfalto e nas pedras.…
A cada pueblo, uma novidade. As pessoas passam, desejam buen camino!, e ficam por ali, em suas rotinas. E a gente passa, e vai embora. Algumas pessoas conversam, outras dizem “olá” com um sorriso, outras nem olham, e outras te olham como se você fosse um mendigo, um palhaço, um extraterrestre. Cada um tem uma opinião. Existem os bons hospitaleiros, mas também existem os maus hospitaleiros.
No mesmo dia, presenciei os dois tipos. La Rioja, a melhor região de vinhos da Espanha. Muito diferente da Navarra. Na entrada de Logroño, somos recepcionados por uma mulher fantástica e sua filha – Felisa, higos, agua y amor –, que oferecem café com leite, ovos fritos, pão e outras coisas a quem queira pagar € 3,00. É muito pouco para retribuir tanto amor. Alguns quilômetros depois, em Navarrete, encontramos uma mulher que deve tomar conta do albergue municipal por castigo, ou algo assim. Rude, nem me deixou entrar para pegar o meu carimbo. Navarrete, nunca mais! Fui tratado e observado como um ladrão. Dormi na rua, em cima de uma pedra, como um mendigo. Apenas tentei dormir. É muito difícil deixar suas preciosas coisas no meio da rua. Com o mínimo barulho você acorda. Dentro do saco de dormir, uma faca estrategicamente colocada. Nunca se sabe o que pode acontecer. Mas, graças a Deus, estou bem protegido.
…
Expliquei a Rasmus, em uma estrada cercada por campos de feno, que mais pareciam o mar com o vento, o que significava o Espiritismo. O meu mal inglês não ajudou muito, mas consegui que ele entendesse o real espírito da coisa. Em certo momento, ele para e me pergunta, empolgado: “Você então quer me dizer que NUNCA estamos sozinhos?”. Isso mesmo, Rasmus! Ao dormir ao relento, com seus imaturos vinte anos, quase vinte quilos na mochila, e uma cabeça que ainda levará muitas pancadas da vida, você entendeu. E ficou feliz. Você não está sozinho. E eu também fiquei feliz: ganhei um novo e grande amigo, e um lugar para ficar quando resolver visitar Colônia.
…
Qual o sentido da vida? Ou do amor? Karen também está pensando nisto. Filha de pai basco e mãe irlandesa, atualmente mora em Liverpool. Deixou sua namorada em seu país. Não sabe, se quando voltar, ficará com ela. Hoje, enquanto caminhava, começou a rir, e disse que imaginava uma cena de amor com ela. Ali, no meio do mato, numa árdua subida, isso era a última coisa que eu imaginaria. Mas comecei a pensar o mesmo, depois. Tenho saudades do contato pele a pele com alguém. Isso faz muita falta aqui. Sexo é uma coisa que não faz muito parte do Caminho. Estamos sujos, cansados, mais preocupados com os pés do que com uma bela trepada. Não estamos aqui por diversão. Diversão é passar 40 dias na praia – em Ibiza, como sugeriu meu irmão –, e não caminhando 10, 20, 30 ou 40 quilômetros por dia. As paradas são um momento para relaxar os pés, os ombros, o estômago. Conversamos em espanhol, inglês, alemão, francês, italiano, checo e português. E nos entendemos. O Caminho tem muitas línguas, muitas culturas, muitas religiões. Aqui estamos preocupados não só com nossos pés, mas também com os outros. Eles têm o mesmo sonho. E se alguém não está bem, estamos aqui para ajudar. Este é o espírito do Caminho.
…
Estou sentado na rua, na frente do único bar de San Juan de Ortega. Sentado numa cadeira, e os pés para cima, em outra. Fumo um cigarro. Ao meu lado, na sombra, uma garrafa de um vinho da região de Burgos. Ontem, tomei um La Rioja que estava na minha mochila. Dividi com Karen, Robert, Karin e Chantall. Hoje é um dia de descanso. Amanhã a meta é Burgos, quase 30 km. Tentarei chegar. Afinal, com pão e vinho se faz o Caminho.
…
Penso por quantas pessoas já passei. Quantas pessoas já conversei, quantas pessoas estão na minha frente no Caminho, ou atrás de mim. Gerti partiu de Zubiri e eu fiquei por lá. Três dias depois, ela já estava mais de 50 km na minha frente. Austríaca, maratonista, não aguentou a minha moleza. Giuliano ficou em Roncesvalles, enquanto fomos a Saint Jean Pied de Port. Um dia na minha frente. Italiano, ficou feliz que eu era um Longobardi. Me deu um beijo “fratello” em cada bochecha na despedida. Talvez eu ainda o encontre. David seguiu o itinerário do seu guia americano. Na despedida, na entrada de Pamplona, disse que preferia andar sozinho para treinar seu espanhol. Eu andava fazendo o papel de tradutor-intérprete. Foi divertido. Um legítimo pai de família americana. Fabian ficou em Estella mais um dia, para conhecer uma igreja 10 km fora do Caminho. Deixaria suas coisas no albergue em Ayegui e seguiria no dia seguinte. Suíça, falava francês, mas também espanhol, inglês, português e russo, que considerava sua segunda língua preferida, depois da língua-pátria. Óculos grandes, alguns cabelos brancos no meio de um negro e liso penteado, andava devagar com seu passo estilo “mestre Yoda” com sua bengalinha. Seu sorriso era marcante. Os três irlandeses loucos em Cizur Menor. Foi muito divertido ouvir deles que a Irlanda é como o Brasil, e que eu seria muito bem-vindo em suas casas. Joan, a sorridente americana, com seus 40 e poucos anos. Uma agradável companhia no jantar. Os dois velhos irmãos irlandeses, Jack e Unshinn, que me chamavam carinhosamente de fratellino. Que abraços bons de avô que ganhei. Que saudade fiquei do meu saudoso vô Chicão. Katrin, a alemã que me olhava como se estivesse querendo me seduzir, foi importante para eu ver como os sinais, em outros lugares do mundo, são diferentes. Ela só me olhava. Ganhei uma nova amiga, num piquenique entre ovelhas em algum lugar da Navarra. Vinho e um recheado sanduíche. Na despedida, em Nájera, ganhei um selinho. As amizades no Caminho são curtas, mas intensas. Karen. Choro só de pensar em vê-la indo embora hoje (nota: a foto que abre este texto). Que mulher fantástica. Me lembrou muito a atriz Juliette Lewis, e tem um timbre de voz parecido. Era uma companhia agradabilíssima, e peidava e arrotava ao meu lado como se fosse um amigo de longa data. É estranho ver uma mulher com pelos em baixo do braço. Costumes diferentes. Ela acha estranho tomar banho todos os dias, aqui no Caminho. Ela se foi, e me deixou com muitas saudades, uma palavra sem tradução para o seu inglês. Marcelo, de Porto Alegre. Joga vôlei na Europa há 8 meses. A última notícia que tive é que ficou em Logroño, com medo de estragar o joelho. Não sei se continuou. Deixará boas lembranças também. O francês de bigodinho com o seu burrico, a mulher que andava com um cachorro, que me disse que ele a seguia há três dias, o casal de velhinhos que andava desde Zurique, as duas belgas que andavam a cavalo desde a cidade natal, e que depois de Santiago voltarão pra Bélgica por Portugal, sul da Espanha e depois França, planejando completar o trajeto em nove meses de viagem… Todos somos loucos. Todos somos humanos. Todos somos diferentes. O Caminho de Santiago é universal. É difícil descrevê-lo em poucas ou infinitas linhas.
…
Ah, o céu da Espanha! Que azul! Ora cortado por nuvens, ora cortado por aviões a jato, que parecem cometas, ora cortado por pássaros. Ainda não caminhei na chuva. Achei que seria hoje. Mas o céu está claro, e as nuvens carregadas estão indo com o vento para amanhã. Ou depois de amanhã.
…
Para onde você vai? De onde você veio? O que você faz aqui? Qual é o seu país? Está com bolhas? Fala a minha língua? Pode explicar para a moça do caixa o que eu quero? A vida de tradutor-intérprete no Caminho é maravilhosa.
…
Ah, os italianos! Como é divertido ouvi-los conversar! Simpaticíssimos e amorosos. Os alemães são meio secos, mas são abertos a conversas. Os franceses do Caminho são… franceses. Recusam-se a te entender, ou entender qualquer um, te atrapalham na cozinha, são um pouco ou muito odiados. Salvo diversas exceções. Tem um francês que fala espanhol, inglês e um pouco de português, umas senhoras simpáticas que ficaram torcendo para mim enquanto eu furava minha primeira bolha com uma agulha, e que se despediram de mim em Santo Domingo de la Calzada, mas voltariam a partir dali no ano que vem; outros que não lembro o nome, e Chantall, a francesa que fazia o Caminho sozinha, e que todos os dias mandava mensagens de texto no celular para seus nove filhos. Sua idade era uma incógnita, mas mesmo sem falar nada em outra língua, conquistava a todos com o seu doce sorriso.
…
Tenho muitas coisas ainda a escrever, mas já são 19h aqui, o bar começa a servir o jantar e eu vou comer e dormir, pois amanhã quero estar renovado para conquistar mais quilômetros. Boa noite, e buen camino para mim, amanhã.
Do meu diário – 31 de maio de 2006
1 Comment