Dia Doze
Acordei às 6h com os italianos do quarto arrumando suas coisas com lanternas. Era mais fácil acender a luz, pois eles falavam alto como italianos, hehehe. Me arrumei e, quando estava quase pronto, resolvi fazer um teste: andar com as minhas botas novamente. Como elas estavam penduradas fora da mochila, o sol deve ter dado uma secada nelas, pois foi difícil calçá-las. Parecia que meus pés estavam inchados, mas assim mesmo coloquei: vamos ver o que vai dar…
Encontrei Mira na cozinha, que me convidou a tomar uma sopa com eles, e dei dois dentes de alho para “reforçar”. Saí sozinho às 7h50 de Redecilla del Camino e encontrei Rasmus na saída da cidade. Uns 20 minutos depois, ele sentiu falta de seu chapéu. Procurou em sua mochila e resolveu voltar correndo até o último lugar em que havia parado. Fiquei lá no meio da estrada esperando. Mira e Rarder passaram por mim e continuei esperando. Mais de 40 minutos depois, resolvi começar a andar e peguei a mochila dele para adiantar. Desisti na hora. Aquilo parecia uma estátua de mármore antes de ser esculpida, pois pesava muito mais do que a minha no dia em que cheguei na Espanha. Quando ele voltou, triste por ter perdido o chapéu, descobri que ele carregava mais de 20 quilos nas costas (tinha até um mini fogareiro na bagagem). Como eu tinha uma toalha de rosto sobrando (na verdade, uma fralda de pano, algo bem leve e de secagem rápida para carregar na mochila – dica de ouro), dei a ele para proteger a cabeça, pois o sol continuava a castigar.
Enquanto conversávamos, ele perguntou a minha religião, e eu disse que era um pouco católico e mais espírita. Ele não sabia o que era espiritismo, então expliquei com o meu “maravilhoso” inglês. Foi interessante, pois ele entendeu! E os 7 km passaram bem rápido. Em Viloria de Rioja havia um parque infantil em uma praça, e sentamos uns minutos no balanço para descansar. Do nada, apareceram dezenas de cachorros à nossa volta, e o que ficou ao meu lado pedindo carinho se parecia muito com o “meu grisalho”, o Tiko, e fiquei com saudades. Aquilo parecia um sinal, e eu não conseguia tirar essa imagem da cabeça.
Em Villamayor del Rio (uma curiosidade engraçada desse lugar é ser conhecido como “O Pueblo das Três Mentiras”, uma vez que não não é Vila, nem é superior, e muito menos tem rio), encontramos Mira e Rarder tomando café no famoso albergue Acácio & Orietta. Acácio é brasileiro, está há sete anos no Caminho de Santiago como hospitaleiro e abriu este refúgio no começo do ano (aqui são anotações do meu diário de 2006 – Acácio já dedica 17 anos aos peregrinos e continua por lá firme e forte, agora em Viloria de Rioja). Uma figura. O albergue é um pedacinho do Brasil: muito aconchegante e bem instalado. Se calhar, na sua peregrinação, tente passar a noite aqui: vale realmente a pena. Ficamos um tempo conversando, tomamos café da manhã e acabei colocando novamente a papete. A bota estava me incomodando muito, e fiquei com medo de ganhar novas bolhas. O problema da papete é que o pé não fica muito protegido, e você corre o risco de torcê-lo com mais facilidade, fora o solado duro, que incomoda muito com o peso da mochila. Rasmus resolveu ficar ali mais um pouco, então saí sozinho para mais um trecho.
Logo depois encontrei Lisbôa e Luís, que estava com os pés cheios de bolhas. Ele resolveu andar em marcha rápida até Belorado, para arrancar as botas e cuidar das bolhas, então fui andando mais tranquilamente com Lisbôa, em um papo agradabilíssimo. Chegando em Belorado, ele encontrou Luís no albergue e ficou por lá. Como o meu desafio do dia era Villafranca Montes de Oca, fui decidido a não desistir.
Andei bem devagar. Meus pés doíam a cada respirada. Parei ao lado da igreja de Belorado para fazer uma massagem nos pés e ver se aliviava um pouco. Ajoelhei para um Pai Nosso na igreja, dessa vez pedindo forças para continuar, pois estava muito, mas muito difícil. Toda a sola e os tornozelos gritavam… 🙁
Chegando em Tosantos, parei para almoçar na praça do albergue, na companhia de um casal maravilhoso: Colin e Selena, da Califórnia. Eles estavam comemorando a Lua de Mel no Caminho de Santiago. Na saída do pueblo reencontrei Rasmus, que havia terminado de comer e iria fazer uma siesta. Descansei um pouco mais os meus pobres pés e continuei sozinho, novamente. Quando caminhamos muito tempo sozinhos, conversamos por demais conosco. Isso pode ser bom, mas naquela minha situação estava muito, muito ruim.
Passei capengando por Villambistia e quase rastejando em Espinosa del Camino (lugar da foto que abre esta publicação). Tentei procurar o albergue de lá – meus pés doíam demais –, mas o único que existia estava com as 10 camas ocupadas. O meu vizinho, que conheci em Grañon, e o cara de Vinhedo estavam por lá. Tirei as meias e fiz uma massagem no pés para ver se melhorava a situação, afinal eu tinha mais 4,5 km até Villafranca. Do albergue até mais 1 km pela frente, fui seguido por um simpático cão, que consegui até dar água para ele com a mão em concha.
A partir desse novo trajeto a sós com a minha consciência, tudo começou a desmoronar. Cada passo era um martírio, os cachorros vinham à mente e eu comecei a desconfiar que havia acontecido algo ao meu grisalho em São Paulo. A cada fisgada no pé eu achava que algo ruim estava acontecendo no Brasil e estavam escondendo de mim. A cada pontada, uma lágrima. Não adiantava mais rezar 10, 20 Pais Nossos, ter pensamento positivo, otimismo, qualquer coisa: a situação estava uma merda. Uma grandessíssima merda. Eu andava e chorava de dor, a cada passo um soluço. Próximo às ruínas do Monasterio San Felix, uns peregrinos que eu não conhecia passaram por mim olhando com pena, perguntando se estava tudo bem. Não estava, claro. Não tinha nem mais vergonha de chorar na frente de alguém por causa da dor, que não cessava. Ali, naquele pequeno monte de pedra que sobrou do Monasterio, tomei uma decisão: iria parar em Villafranca Montes de Oca até os pés melhorarem e desistiria de tudo aquilo. Ninguém estava acreditando que eu chegaria até Santiago andando, mesmo, então eu não iria surpreender ninguém desistindo… Respirei fundo, tomei coragem e continuei a andar.
Foi um sacrifício até a entrada de Villafranca Montes de Oca. A primeira coisa que fiz foi parar na farmácia. Comprei um Redoxon efervescente e um tipo de proteção especial para as bolhas (o Compeed, em 2006, era o grande milagre para os pés, TODOS recomendavam – e pelo que tenho visto em minhas pesquisas, é bem recomendado até hoje). Foi mais um sacrifício até o albergue. Entrei lá como um perdedor, um desertor, alguém indigno de carimbar a Credencial de Peregrino, quanto mais dormir em um lugar destinado a peregrinos de verdade. Eu estava deplorável. O cocô do cavalo do bandido.
Quando entrei no quarto, gritos! Karen, Robert e Karin estavam lá e ficaram muito felizes em me ver. Olharam a minha cara de sofrimento e desilusão e ordenaram que eu fosse tomar um banho para melhorar o humor. Deixei com eles algumas coisas que estavam na minha mochila para completar o jantar que eles iam começar a fazer: alho, fuet (um tipo de embutido espanhol), metade de uma garrafa de vinho de La Rioja e uma barra de chocolate. Jantamos em companhia também de Chantall, uma francesa que tem andado sozinha e não fala nada de inglês ou espanhol. Depois de comer, liguei para casa e “pressionei meu pai na parede” para ele contar se estava escondendo algo de mim. Ele disse que um primo dele, de Bragança, havia falecido uns dias atrás, decorrente dos problemas com o rim. Voltei a ficar mal, eu gostava muito do Zé Dulcídio, e chorei um pouco na mesa, ao contar para eles.
Já no quarto, antes de dormir, Rasmus apareceu no albergue e conversamos todos mais um pouco. Revelei o que eu estava pensando em fazer, e eles ficaram muito chateados. Para me incentivar, Karen falou para eu acompanhá-la até San Juan de Ortega, a próxima cidade no mapa, e ficar por lá para descansar. Daí eu teria mais de 16 horas de descanso para pensar melhor se valia realmente a pena desistir. Aceitei. Para firmar esse “pacto”, Robert trançou umas pulseirinhas de linha e amarrou em nossos braços. Estava formado o The Fellowship of the Camino: Eu, Robert, Karen, Rasmus e Karin. Estava feita a promessa de que tentaríamos a todo custo atingir nossos objetivos, por mais dolorosos que eles pudessem ser.
E em um pueblo da Província de Burgos, rodeado de grandes amigos, desisti de desistir.
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