Dia Trinta e Seis
Acordamos um pouco tarde e demoramos um bom tempo para conseguir separar peça por peça das roupas secas e cheirosas entre nós sete (finalmente eu tenho meias e cuecas limpas!). Começamos a andar eu, Pipa, Dani, Erin, Domenico, as Martas e Peter. Íamos em silêncio, cada um fechado em seu universo, tentando descobrir o porquê de realizar o Caminho de Santiago e o que aconteceria na volta para casa. Cada um estava triste em si porque, infelizmente, tudo acaba um dia…
Paramos em O Pedrouzo (ou Arca) para tomar café da manhã, mas como já era praticamente hora do almoço comemos uma bela salada com vinho branco.

Cada um andou num ritmo: lentos correram, rápidos andaram devagar, mas conversávamos por celular para descobrir a quantos quilômetros cada um estava de Santiago. Peter sumiu, na frente. No Monte do Gozo (foto que abre esta publicação), eu e Marta A. paramos para tomar alguma coisa e descobrimos que Marta B. estava nos esperando um pouco antes da entrada da cidade, e Domenico, Dani, Erin e Pipa já nos aguardavam a 1 km da Catedral, para chegarmos todos juntos.
Na entrada de Santiago de Compostela começou a chover, e eu e as Martas paramos um pouco para encontrar nossas capas. Cada metro parecia um quilômetro. Andávamos em total silêncio, nervosos e apreensivos.
Esperando fechar o farol, em uma avenida, avistamos Leen e Kate do outro lado, que começaram a pular animadas e quase foram atropeladas ao atravessar em nossa direção. Leen perguntou empolgada se eu havia encontrado sua garrafa d’água no Monte do Gozo, pois ela sabia que eu prestava atenção em todos os bilhetes deixados ao longo do Caminho para ver se encontrava algum recado para mim. Justamente hoje eu não havia prestado atenção nisso, e o único dirigido a mim eu não vi. Ela disse que escreveu Mr. Longobardi na sua garrafa d’água e colocou dentro dela um bilhete de despedida para mim, agradecendo o carinho por ela, o cuidado com seus pés e bolhas, o dinheiro que emprestei a ela e Kate, e que eu continuasse sendo o wise guy que ela conheceu para sempre. Essa garrafa PET de um litro e meio dela já estava destruída quando nos conhecemos perto de Hospital de Órbigo (12/06/06), e eu sempre tirava sarro disso. Fiquei MUITO triste por não ter encontrado meu bilhete, mas a sincronicidade do Caminho de Santiago é assim: se eu o tivesse encontrado, eu nunca a veria pessoalmente naquele momento, pois estavam indo em direção à rodoviária para pegar uma praia em A Coruña. É, era hora de dizer adeus… Quando estávamos nos aproximando para um abraço, algo muito maluco aconteceu: nossos olhos se encontraram e olhamos profundamente um para o outro. De repente, nada mais existia ali, avenida, amigos, carros, casas, aquele era o nosso lugar em um passado bem distante, onde nos beijávamos, nos amávamos e vivíamos felizes para sempre. Os flashes, as imagens correndo alucinadamente com cenas de nossa rotina, era algo absurdamente real e assustador. Quando voltamos à realidade, nos olhamos cheios de lágrimas, não acreditando no que havíamos visto, e nossos lábios se aproximaram muito mais. Leen parou e disse, triste, que não podia, e eu sabia: desde que nos conhecemos ela falava de seu namorado, estava muito apaixonada, por isso que mantive o meu amor platônico em certo silêncio, tentando me aproximar lentamente para ver até onde aconteceria alguma coisa. E aconteceu. A milímetros de seus lábios foi o máximo que cheguei nesta vida, mas havíamos acabado de (re)ver a nossa linda história juntos, justificando o porquê de seus olhos e sorriso serem tão familiares para mim quando a conheci. Nos abraçamos bem forte, torcendo para o mundo acabar ali. Nos olhamos novamente, chorando, ela fez um sinal da cruz na minha testa, disse God bless you, e voltamos a caminhar aos nossos destinos sem olhar para trás…
Reencontramos Domenico, Dani, Erin, Pipa e Maria, uma italiana que eu ainda não conhecia, e começamos todos a chorar. As emoções estão fortes demais… estamos muito perto, agora, para avistar a Catedral, falta muito pouco para terminar, e o fim também é muito triste. Esse deve ter sido o quilômetro mais lento de nossas vidas. Numa praça, avistamos as torres da lateral esquerda da Catedral. Abraços e choros nos tomaram por uns 10 minutos. Era uma sensação inexplicável de alegria, tristeza, desespero, medo, coragem, alívio, amor, tudo expelido em forma de lágrimas e gargalhadas. Ali, todos abraçados, éramos uma família. Não conseguíamos conter o choro de jeito nenhum. Parecia um sonho em que estamos flutuando, onde não existe mochila pesada nem dores nos pés…
Andamos mais um pouco e chegamos à frente da Catedral. Mais choros e abraços e gargalhadas. Peter, Javi e Gemma nos encontraram e sentamos todos em roda na praça, admirando a arquitetura e tudo o que a Catedral de Santiago de Compostela representava por no mínimo duas horas.




Ao encontrarmos Dario na Praza do Obradoiro, começamos a cantar parabéns em italiano, pois ele estava completando hoje 50 anos. Apareceu uma mulher nos oferecendo um apartamento com 5 lugares por um preço bem legal, e eu, Domenico, Peter, Dani e Erin aceitamos. O mais engraçado do lugar era o banheiro, pois precisávamos agachar para entrar, por causa do teto baixo, de resto, era super confortável. Depois de um banho e descansar um pouco, nos encontramos novamente na praça da Catedral para pegar a nossa merecida Compostelana. Não há emoção maior em ver seu nome escrito nesse certificado, e claro que comecei a chorar novamente.
Jantamos todos juntos, comemoramos o aniversário de Dario e relembramos todas as canções que animavam as nossas caminhadas diárias. Pediram para eu cantar Carinhoso, Domenico cantou uma típica italiana, Gemma, uma canção romântica da Holanda, as Martas, uma típica de Zaragoza, e Peter, uma canção espanhola que ele adorava. Depois disso, bar e fiesta! Dançamos salsa até o amanhecer.
Amanhã é dia de descanso, mas, no dia seguinte, recomeço minha peregrinação até Finisterre, a última etapa do Caminho, para eu queimar minhas roupas no fim do mundo.
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