Dia Vinte e Quatro
Acordei muito bem, e com disposição para andar até Santiago. Ao arrumar minhas coisas, notei a falta da única blusa que eu havia levado para a viagem. Provavelmente ficou em uma cadeira dos inúmeros bares que paramos na noite em León. Espero que não esfrie tanto hoje, senão eu vou sofrer um pouco…
Enquanto terminava de tomar o meu belo café da manhã na parte de fora do albergue de San Martín del Camino, vi passando uma loura com dreadlocks no cabelo que, não sabia a razão, acabou mexendo demais comigo. São aquelas situações que podem não acontecer somente no Caminho de Santiago, mas eu precisava falar com ela, saber de onde vinha, para onde ia, essas coisas. Engoli rapidamente o que sobrava do café, levantei acampamento e zarpei em “velocidade de cruzeiro” para tentar alcançá-la. Impressionante, mas meus pés estavam ao meu favor e consegui caminhar com o ritmo mais rápido pela manhã em semanas.
Ela andava bem rápido, e levei quase 30 minutos para alcançá-la. Seu nome é Leen, uma belga que trabalha com crianças em uma escola na Escócia. Seu sorriso e seus olhos eram assustadoramente familiares para mim. Durante a conversa, descobri que ela iniciou o Caminho em Villadangos del Páramo, andará por uns três dias e voltará de ônibus até León para encontrar uma amiga inglesa e recomeçar dali com ela.
A vista da Puente del Paso Honroso é tão grandiosa como a lenda que a acompanha há séculos. Esta história é tão famosa que é citada no livro Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes (fonte):
… Digam que foram mentiras as justas de Suero de Quiñones, o do Passo, as empresas de mossém Luís de Falces contra D. Gonçalo de Guzman, cavaleiro castelhano, e outras muitas façanhas praticadas por cavaleiros cristãos, destes reinos e dos estrangeiros, tão autênticas e verdadeiras que, quem as negasse, careceria de razão e de bom discorrer.
Chegamos em Hospital de Órbigo, procuramos uma tienda para comprar algo para comer e nos instalamos embaixo de um dos arcos da ponte para apreciar a sombra e a vista. Quando sentamos, ela me mostrou uma bolha gigantesca que tinha no dedo do pé e eu me ofereci para tratar antes que estourasse (eu não tratava uma bolha desde Azofra, e é sempre bom treinar). Enquanto descansávamos um pouco depois do almoço, ela pegou na mochila seu par de swing poi e ficou praticando um pouco. Aquela paisagem, toda a carga medieval do lugar e sua performance com os malabares me transportaram para outro mundo…
Saindo dali, encontramos Rien e Gemma, que haviam acabado de sentar para almoçar em um restaurante. Nos despedimos e seguimos viagem. De repente, o céu nublado se transformou em uma fina chuva. O meu primeiro dia de chuva, no Caminho. Toca aprender a colocar a capa na mochila e enfiar a capa de chuva por cima de tudo. Isso deixa tudo bem abafado, mas pelo menos compensa a falta da minha blusa. Com a papete e as meias ensopadas, meus pés começaram a doer muito, então a cada parada eu tirava tudo para massagear os pés (e torcer a água fria das meias).
Numa trégua da chuva, paramos para descansar e conhecemos Lucas, um paulistano de Pinheiros que é músico experimental. Uma figura zen, que começou sua peregrinação em Saint Jean Pied de Port uma semana depois do meu início, mas andava uns 40 km por dia, apenas apreciando a vista por onde passava e, quase sempre ao anoitecer, parava em algum lugar para dormir. É, cada um faz o Caminho do jeito que bem entende. Eu preferia ser também “turigrino”, e conhecer um pouco de cada lugar por onde eu passava. Demorava mais, claro, mas a minha bagagem cultural estava sempre mais pesada que a minha mochila. 🙂
Andamos juntos até Astorga e, por volta das 20h, chegamos molhados, cansados, doloridos e mortos de fome ao alberge. Tomamos uma ducha quente, preparamos uma sopa na bem estruturada cozinha do lugar e fomos dormir.
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