TOMO II – Inferno (01 a 15 de junho de 2006)
Dia Quatorze
Acordei um pouco tarde, mas San Juan de Ortega fez muito bem pra mim. Acordei renovado e pronto para chegar em Burgos, a capital da Província de mesmo nome. Comecei a andar às 8h, em um trajeto com mais subidas e pedras soltas, além do agradável frio. Esse trecho de floresta é muito bonito. Estava andando sozinho e muito feliz. Peguei o kazzoo para tocar e fui caminhando, tocando e seguindo o vento, os pássaros e as setas amarelas. Quem passava por mim achava que eu era um louco, hehehe, mas um louco feliz. De uns dias para cá, tenho enfeitado a ponta do meu cajado com diversos tipos de folhas e flores que venho encontrando pelo caminho. Está bizarro, mas eu gosto assim.

Antes de chegar em Agés, temos um simpático pedido em um portão entre as cercas (foto que abre esta publicação). Em alguns trechos podemos passar em propriedades particulares, e o dono corre o risco de perder seus animais, caso alguém não feche a porta. Sim, eu fechei assim que passei. 🙂
Subi uma grande montanha, e o topo era todo gramado, com vento frio e uma sensação de liberdade maravilhosa. Me senti dentro da cena inicial do filme A Noviça Rebelde (tá, confesso que cantei alto isso, enquanto girava de braços abertos lá em cima…).
A cada pueblo, meus pés reclamavam mais. Antes de sair enfaixei o pé direito, para prevenir, e ele estava piorando, agora com o pé esquerdo acompanhado. Resolvi parar em Villafría, uma cidade antes de Burgos, mas desisti imediatamente, assim que descobri que lá não tinha albergue. As pessoas foram muito frias comigo, não respondiam nada direito e com muita má vontade, e o único hotel era uma fortuna (pagamos entre € 3,00 e € 10,00 – preços de 2006! – nos albergues municipais ou particulares, e ouvir que uma noite em um hotel é € 42,00 te faz andar até mais 20 km atrás de uma cama mais barata). Parei na saída da cidade para tentar rearranjar meus pés, pois nem farmácia souberam me indicar por aqui. Cortei metade da faixa do pé direito e coloquei no esquerdo. Tá foda, muita dor agora nos dois pés, e eu tenho mais uns 4 km até Burgos.

São quatro desagradáveis quilômetros por uma estrada feia, com muitos caminhões, poluição visual e nasal, muitas fábricas, um saco! Quero voltar para San Juan de Ortega! Onde está a simpatia das pessoas e a beleza dos lugares? A situação piora ainda mais quando você descobre que o albergue não fica na entrada da cidade, e sim em um lugar que ninguém sabe responder. E isso significa andar mais.
Encontrei um tipo de shopping com um supermercado dentro, mas nada de farmácia. Perguntei se podia deixar minhas coisas em algum lugar e fui às compras: um colchonete para dormir melhor ao relento, mais filmes para a máquina e outros troços fundamentais. Saindo de lá, notei que havia esquecido meus óculos em um balcão de loja… PORRA! PERDI MEUS ÓCULOS! Meu bom e velho Armani, que me acompanhava já há uns 8 anos… armação com grau e lente escura acoplável, coisa linda. Voltei ao shopping e meio que não deixaram eu entrar na loja, mesmo eu falando que havia esquecido meus óculos, foram bem ignorantes. Resolvi desencanar e aceitar a perda, afinal eu não queria arranjar briga, e já tinha me desapegado de tanta coisa… Aprendi que as coisas materiais são apenas coisas materiais. Da vida nada se leva, mesmo, apenas carregamos o conhecimento e a sabedoria…
Mesmo aceitando a perda, eu havia odiado aquele lugar. Me sentia como um extra-terrestre, um palhaço, um interno do Juqueri todo cagado, e outras coisas piores. As pessoas me olhavam com repugnância, uma merda! Quero voltar para San Juan de Ortega! Bom, como a saída de Burgos estava mais próxima que a cidade que me acolheu tão bem no dia anterior, resolvi passar direto por Burgos e andar mais 7 km até Villabilla ou dormir na estrada, caso não aguentasse, daí eu já estreava o meu colchonete. Para ter uma ideia, até meus pés melhoraram de repente para essa injeção de ânimo.
Burgos é enorme! Andei muito por dentro dela para encontrar a saída. Achar setas amarelas aqui é como uma gincana: você fica que nem bobo procurando uma maldita indicação e ninguém sabe te explicar. Na verdade, as pessoas que eu encontrei nem sabiam que o Caminho de Santiago existia! Não sei explicar, mas parecia que eu estava deslocado do meu lugar certo de estar naquele dia. Havia uma assincronia enorme ali. Parecia que eu estava num mundo paralelo, em algum lugar que não parecia ser o que realmente era. Um tipo de inferno, que você anda e nunca chega a lugar nenhum e quando está para chegar, o caminho se repete completamente, ad aeternum.
Não há fotos minhas desse lugar. Não há nada meu nesse lugar (a não ser meus pobres óculos). Passei batido pela maravilhosa Catedral de Burgos, Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, e nem entrei para ver a cripta de El Cid, passei batido por tudo aquilo, sem dó. Quem sabe numa outra oportunidade eu e Burgos façamos as pazes, afinal havia beleza em todos os cantos, mas eu não queria aceitar aquilo como beleza. A única coisa legal enquanto eu andava foi quando minha mãe me ligou para eu dar parabéns à minha avó, pelos seus 80 anos (isso é informação de 2006. Hoje ela completa 90 – Parabéns, vó!). ^^
Encontrei Colin e Selena, que resolveram ficar em um hostal porque o albergue municipal ficava nos limites da cidade, mais 2 km à frente. Continuei, determinado em nem dormir neste lugar. Mais para frente encontrei um galego que eu normalmente só falava “oi” e fomos juntos até o albergue. Eu ia só usar o banheiro e zarpar. Entramos em um tipo de parque, repleto de paineiras, que proporcionavam aquele mesmo efeito que eu vi no terceiro dia de caminhada: paina flutuando como neve, gramado inteiramente branco, como neve, uma das coisas mais lindas que eu já tinha visto, mesmo estando em um mundo paralelo em que eu precisava odiar aquilo com todas as minhas forças. Aquilo era o jardim do albergue de Burgos. Ao entrar, fui recebido com vivas pelo divertido trio brasileiro que nunca marcamos nada, mas sempre nos encontramos: Lisbôa, Luis e Marcos. Eles conseguiram me convencer a ficar ali, dizendo que era muita loucura o que eu estava pensando em fazer. Afinal já eram 20h e eu estava caminhando há doze cansativas horas.
Fui tomar banho, afinal não sabia o que era isso desde anteontem, e o banheiro estava LASTIMÁVEL. Além de sujo e inteiro molhado, não tinha porta na ducha para eu pendurar e proteger o meu inseparável porta-documentos. Desencanei. Outro dia sem banho. Amanhã, quem sabe…
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