Dia Nove
Acordei às 6h. Foi um pouco difícil descer os três andares da escada da cama, por causa da dor nos pés, mas sobrevivi. Na saída do albergue de Viana, encontrei os dois irmãos irlandeses. Eles teriam que voltar de Logroño para a Irlanda, pois a filha de Jack iria se casar. Trocamos e-mails, fotos e abraços “fratellinos”. Gostei muito deles, e foi recíproco. Por aqui é sempre essa eterna despedida, e as emoções sempre ficam à flor da pele.
Seguimos eu, Karen, Rasmus e dois figuras da República Tcheca, Mira e Rarder (lê-se Rárdêc), que leva um violino em sua mochila. Nem meia hora depois eles resolveram parar para descansar, então continuei a andar com Karen. Para a caminhada parecer mais rápida, brincamos de juke-box: ela cantava uma música, depois eu que cantava.
A entrada das cidades, por mais pomposas que sejam, sempre nos presenteiam com o agradável odor de fezes de caprinos em geral. Algumas vezes fica até difícil desviar das bolotinhas, hehehe. Calma, futuro peregrino, você acaba se acostumando, não se preocupe. 🙂
Logo depois fomos recebidos com festa por uma mulher incrível e sua filha, oferecendo um café reforçado por € 3,00. Eram 9h30 e não resistimos. Café com leite, pão, manteiga, dois ovos fritos e geleia.
Visitamos a Iglesia de Santiago el Real, que na porta tem uma gigantesca estátua de Santiago Matamoros. Uma maravilha! No interior, os vitrais apresentam a cruz de Santiago, marca do caminho, e também cruzes templárias. Me sentei numa das cadeiras que cercavam o altar, e senti como se já havia sentado ali antes, como se fosse um lugar reservado para mim. Muito doido, isso…
Logroño é uma cidade bem grande, e nós dois estávamos inspirados, pois ríamos de qualquer bobagem falada. Karen sentou no chão no meio de uma rua, de tanto que riu da placa de uma escola espanhola de inglês, o Instituto Don’t. Não fotografei, uma pena, mas deixei o link aí para você tirar suas conclusões. Ao parar em um mercadinho para comprar frutas, uma senhorinha deu de presente pra gente duas maçãs, para termos força até Santiago. Agradecemos e prometemos rezar ao apóstolo por ela. Quase na saída da cidade, há um parque monstruoso. Uma das áreas estava sendo irrigada, e passamos por dentro dela ao som de Singing in the Rain. Foi ótimo para o calor, e gargalhávamos enquanto as pessoas à nossa volta nos julgavam loucos.
Paramos no Pantano de la Grajera (foto que abre esta publicação) para almoçar e nos despedir da capital de La Rioja. Se todas as cidades fossem assim, tão receptivas e alegres, estaríamos feitos. Aproveitando a sombra e admirando todo o verde e azul da vista, ficamos mais de uma hora conversando sobre relacionamentos. Nossas histórias eram muito parecidas – você acaba até estranhando essa sincronicidade do Caminho de Santiago… parece que existe um “você” em qualquer parte do mundo, pois todos com que você conversa têm ou tiveram situações semelhantes às suas, e as versões contadas se completam, ajudando a ambos –, de ex-namoradas que vão e voltam, e vão e voltam, e vão e voltam, e você não consegue se “livrar” desse padrão. Acabei ganhando uma irmã inglesa, e um canto para dormir quando visitar Liverpool.
Chegamos em Navarrete e encontramos Katrin sentada no bar, entediada. Disse que o albergue municipal estava lotado e o outro albergue estava muito caro. Procuramos outros lugares para dormir e decidimos ficar na rua, nos arcos da passagem em frente ao albergue municipal, pois era um lugar coberto. Esta será minha primeira noite de dorme-sujo no Caminho. Minha “cama” é uma pedra que sustenta um dos arcos, e tem um degrau que fica exatamente no meio do fêmur. Será uma noite realmente incrível.
A hospitaleira do albergue municipal era uma chucra. Não nos deixou entrar no albergue nem para usar o banheiro, mesmo sabendo que dormiríamos na rua. Katrin teve que pagar € 3,00 só para tomar banho (para dormir ali, o valor era € 4,00), e a seguiu por todo o tempo que ficou lá dentro. Não entendemos porque ela estava agindo dessa forma com a gente. Eu e Karen resolvemos não passar por essa humilhação, e ficamos sem banho. Para ter uma ideia, a “hospitaleira” não quis nem carimbar nossas credenciais de peregrinos, além de bloquear nossa entrada até a recepção. Nossa maior vingança aconteceu à noite, quando um velho foi expulso de lá aos gritos. Ele estava bêbado que nem um gambá e mijou em uma das camas do albergue, hehehehe. 😀
Ficamos conversando ali até mais tarde, eu, Karen e Katrin, Rasmus, Mira e Rarder (que apareceram um pouco mais tarde, e iriam dormir no gramado de uma praça junto com o velho bêbado), e mais duas amigas alemãs de Karen (que iam dormir no albergue mais caro). Apesar de tudo, à noite ali era bem bonito. Uma luz amarelada no corredor de pedra fazia um bom ambiente até para dormir. Bom, tentar dormir. Eu usei os cabos-aranha que levei para servir de varal para amarrar nossas mochilas, para dificultar qualquer tentativa de furto. Afinal, sou um brasileiro desconfiado e nunca dormi na rua. Deixei minha faca dentro do saco de dormir, para alguma emergência. A cada passo ouvido à noite, eu acordava. Ali era passagem de pedestres para a parte de cima da cidade. No final do corredor havia um bar, então o movimento foi bem agitado até umas duas da manhã.
Nem parecia que havíamos passado por Logroño no mesmo dia. Aquela simpatia e alegria estava tão longe de Navarrete que parecia que estávamos em um mundo paralelo, onde tudo pode dar errado. Em uma das acordadas da madrugada, olhei para a direção da “cama” de Karen (a área onde Mira e Rarder estão sentados, na foto acima) e, por cima da bota dela, vi uma fileira que a princípio parecia de formigas, mas quando vi melhor, era de pequenas aranhas, filhotes de viúvas negras, parecia, que estavam atravessando da calçada para a rua. Sorte que resolveram fazer esse trajeto pela pedra, e não por cima de um de nós. Nem me mexi. É algo que já estou me acostumando, esse contato mais próximo com outros seres da natureza.
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