Dia Oito
Saí de Los Arcos às 8h, e meia hora depois comecei a sentir fortes dores no meu tornozelo direito, como se fosse um princípio de tendinite (te botam um pouco de terror sobre essa ameaça à peregrinação por aqui, hehehe). Resolvi parar e fazer um teste: como o trecho era bem plano, troquei a bota pela papete de caminhada, e comecei a andar muito bem. Acho que vou deixar a bota pendurada um pouco na mochila, afinal não teremos tantos terrenos exageradamente acidentados pela frente.
Passei por um peregrino que eu não conhecia e acabamos caminhando juntos até a próxima cidade. Era um catalão de Mallorca, muito simpático, mas não guardei seu nome. Chegamos muito rápido em Sansol, 7 km depois de Los Arcos. É, acho que por hora, essa foi a melhor coisa que fiz aos meus pés.
Na entrada da cidade, aguardei com ele a chegada de sua esposa e uma amiga. Assim que elas chegaram, despediram-se e continuaram a andar. Resolvi parar em uma panadería para tomar meu café da manhã. Escolhi duas especialidades da casa e conversei um pouco com a dona. Ela disse que gostava de pessoas do meu jeito, que realmente personificavam o que o caminho representava. Bem diferente de uma maioria de pessoas que a tratavam como se não existisse. Depois de mais uns minutos ouvindo seu desabafo, dei um abraço apertado nela e saí feliz para a caminhada.
Em uma praça da cidade encontrei Jack e Unshinn (na verdade escreve-se Uinsuinn, mas preferi grafar de uma forma mais fácil de se “ler” seu nome), os dois irmãos irlandeses que conheci ontem na Fuente de los Moros. Umas figuras. Unshinn, o de barba bem branca, fala 4 línguas ao mesmo tempo, me chama de fratellino e me dá um abraço. Dividi com eles uma maçã e ganhei uma ameixa preta seca. Enquanto conversávamos um pouco, apareceu um brasileiro, Fernando, que está completando o Caminho de Saint Jean Pied de Port até Burgos. Na primeira vez que fez o Caminho, andou de Burgos até Santiago de Compostela. Acabei andando com ele até o destino do dia, pois os dois irmãos mandaram a gente seguir sem se preocupar com eles.
Fazia muito calor, então realmente achamos sensato parar em Viana. Mais 10 km até Logroño seria muita loucura.
O albergue de Viana é bem grande, e em cada quarto tem 3 camas de 3 andares, muito diferente. Acabei ficando no último andar. É fácil subir, o problema é descer. Jack e Unshinn chegaram um pouco mais tarde e ficaram no meu quarto, também com as camas mais altas, as que sobraram. Unshinn começou a subir com dificuldade para testar e, na hora de descer, se Jack e Fernando não estivessem próximos, ele teria caído de cabeça no chão. Falei para eles conversarem com a hospitaleira para mudar os colchões para um lugar mais seguro, daí eles conseguiram um canto no chão da sala. Unshinn me deu um maravilhoso abraço de avô, em agradecimento à preocupação. Gostei muito, mas muito desses irmãos.
Encontrei praticamente toda a galera nesse albergue, e resolvemos fazer um um jantar coletivo, pois ficaria mais barato que o menu do peregrino. Fui com Karen até o supermercado comprar os ingredientes. Com apenas € 2,00 de cada um tínhamos um banquete! Eu fiz a salada enquanto ela preparava a pasta. Comemos no gramado da área externa do albergue (foto que abre esta publicação) eu, Karen, Marcelo, Katrin e Rasmus, um alemão de Colônia que ia dormir em alguma praça, pois estava sem dinheiro para dormir ali. Um madrilenho, Daniel, ficou ali ao lado apenas observando o nosso jantar.
Depois de comer, Rasmus pegou o violão de estudo (era bem menor que um violão normal) que carregava e começamos a cantar. Quando Karen pegou o violão para tocar, ele tirou do bolso um instrumento muito estranho, que fui descobrir bem depois que era um berimbau de boca, Jew’s harp, guimbarda ou como você preferir chamar esse tipo de lamelofone com som metálico bem maluco. Depois disso, tirou mais dois instrumentos estranhos de sua bolsa e entregou um para mim. Comecei a assoprar aquele troço e adorei o som. O nome daquilo é kazzoo. Disseram que aquilo havia sido feito para mim, então Rasmus acabou dando um deles para mim de presente (no finalzinho do vídeo abaixo dá para ouvir o momento em que ele me dá o kazzoo de presente). Para retribuir eu só tinha um maço de cigarro brasileiro (o meu saudoso Marlboro azul de filtro vermelho), que ele agradeceu muito. Cigarro é muito caro aqui, por isso acabei trazendo um pacote do Brasil.
Cantamos até perto das 22h, pois as portas do albergue iriam fechar. Rasmus não podia ficar na área em que estávamos, pois seria fechada também, mas a hospitaleira acabou deixando ele dormir la dentro, sem precisar pagar. É, existe espírito de caridade no Caminho.
Essa foi realmente a melhor despedida que podíamos ter feito para a simpática e acolhedora região da Navarra. Amanhã entraremos em La Rioja, tendo Logroño como sua primeira cidade. Vamos ver se a receptividade será a mesma.
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