Dia Trinta e Cinco
Acordamos tarde, como sempre. Uma das hospitaleiras veio toda simpática, mas com um sorriso meio desesperado, dizendo para acelerarmos antes que aparecesse a outra, mas não deu tempo: a outra apareceu quase gritando para que saíssemos de lá. Não sabemos o que tinha de tão sagrado naquela sala com três paredes de pedra geladas e sua parede invisível que mandava um vento bem frio para quem tentasse dormir ali, no chão, mas parece que profanamos algo muito sagrado.
Eu e Domenico fomos os últimos a deixar Ribadiso de Baixo. Está bem difícil começar a andar… faltam poucos quilômetros a Santiago, e ninguém parece querer chegar. Paramos para tomar o café da manhã em Arzúa, e depois todos seguiram novamente na frente, deixando eu e Domenico para trás.

Andávamos tranquilamente e, quando percebemos, havíamos iniciado uma longa conversa-exorcismo. Falamos sobre todos os nossos problemas da vida, do trabalho, do amor, da família, dos amigos, das tentativas, dos fracassos, dos erros, dos defeitos, enfim, tudo de ruim que vinha às nossas cabeças, a fim de tentar deixar na estrada tudo o que nos fizesse mal, para que pudéssemos chegar em nossas casas com a cabeça mais aliviada. De repente, nós dois paramos no meio da estrada olhando de boca aberta para a mesma cena: um trecho específico se destacava (foto que abre esta publicação), e parecia um tipo de altar, com grandes pedras e árvores dispostas como se tivessem vida. Aquilo era mágico. Parecia um parlamento de árvores. Ali choramos muito e exorcizamos nossos males. Domenico sentou em uma pedra e disse que cada árvore ali parecia uma alma, e eu senti o mesmo. Entrei ali, me ajoelhei na mata e rezei. Depois abracei uma árvore e comecei a chorar, como se ela fosse alguém que eu conhecesse. Caminhei por ali, tocando em cada caule como se estivesse tocando nos braços de amigos antigos, perdidos em algum lugar no tempo, e acabei encontrando um espaço onde faltava algo, e senti que ali seria o meu lugar, quando eu resolvesse criar raízes como todos naquela área. É muito doido dizer isso, mas eu realmente me senti uma árvore ali, de pé, por uma meia hora.

Chegamos em Santa Irene e encontramos Dani e Erin no albergue. Eles pegaram um táxi para nos alcançar, e traziam uma nova amiga canina: Pipa. Eles pegaram um dos filhotes que haviam nos oferecido ontem em Melide. Quando Peter nos viu, veio nos agradecer, e eu e Domenico fizemos a mesma expressão de dúvida. Ele disse que, ao dormir ontem no chão, entre nós dois, foi sua melhor noite de sono em todo o Caminho de Santiago. Após a morte de seu pai, dois anos atrás, havia novamente se sentido protegido como um filho, e agora por dois pais. Ficamos bem felizes com isso, e daí lembrei de uma das frases que Peter gostava de repetir, com seu sotaque hispano-germânico: “Mama! Las familias en España zon diferentes!”.
Javi, Gemma e Karin decidiram andar um pouco mais, e resolvemos ficar por ali. Fizemos uma “vaquinha” e juntamos as moedas suficientes para lavar e secar toda a roupa dos sete. Tinha até um par de tênis no meio, mas finalmente teríamos roupas limpas para não chegar fedendo a Santiago. Saímos todos para jantar sem meias e, na volta, paramos para conversar com uma família galega que estava reunida em frente a uma grande fogueira. Era noite de São João, e acabamos ficando uma meia hora por lá. É muito interessante conversar com moradores das cidades pequenas, e desfrutar da cultura, simpatia e simplicidade que eles oferecem com seus melhores sorrisos.

Pegamos a estrada de volta no escuro e depois fomos tentar dormir, afinal, amanhã é o Grande Dia. Amanhã chegaremos em Santiago de Compostela. Dá medo. Dá alegria. Dá tristeza. Dá ansiedade. Dá uma mistura de todos os sentimentos possíveis…
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