Dia Vinte e Sete
Acordei relativamente bem, e fui um dos últimos a deixar o albergue de Molinaseca, por volta das 8h30. Encontrei Colin e Selena e seguimos juntos até a próxima cidade. Quase na entrada, a flecha amarela indicava para a esquerda, mas a estrada seguia direto a Ponferrada. Colin e Selena seguiram em frente, já eu decidi seguir a flecha. PÉSSIMA ideia. O Caminho fazia uma curva absurda para passar em mais dois pueblos ANTES da entrada velha de Ponferrada. Devo ter andado uns 5 km a mais que eles, mas mesmo assim, não quero atalhos no MEU caminho: quero percorrê-lo centímetro por centímetro, mesmo que seja doloroso e cansativo. E isso vale para toda a minha vida. Acabamos aprendendo muitas coisas, por aqui…
Avistei de boca aberta o Castillo Templario e já fui logo entrando. Que maravilha! Ao chegar lá dentro, encontrei Colin e Selena já de saída, dizendo que estavam me esperando há 2 horas. Ri com eles das minhas dores, e fui degustar o Castelo. Digo degustar, porque é uma experiência fantástica imaginar o que aconteceu perto de cada pedra daquelas construções. Quantas flechas passaram por cada vão próprio para o ataque. Quantas pessoas viveram em cada aposento. Quantas espadas se encontraram numa luta. Quantas vidas e quantas mortes…
Comecei a procurar a continuação do caminho e parei por 1 hora e meia em um cybercafé para tentar atualizar um pouco o blog, que está muito atrasado, e depois parei em um bar para escrever em meu diário o ocorrido até ontem.
Saí de Ponferrada às 15h, bem tarde, mas valeu a pena. Mais ameaça de chuva, e toca colocar a capa da mochila e deixar a capa do corpo preparada.
Eu queria parar em Camponaraya, mas não encontrei albergue, hostais, hotéis, porra nenhuma. Ao comentar com uma moradora se havia algum lugar ali para dormir, ela disse que eu teria que andar mais uns 4 km até Cacabelos. Quando lamentei pelas dores nos pés, ela me mostrou um ponto e disse para eu ir de ônibus. Na hora me veio uma fúria interior, e eu não me contive ao dizer que não havia caminhado mais de 600 km para pegar um ônibus agora. Ela saiu ligeiramente ofendida, e eu também.
Bom, quase saindo de Camponaraya começou a chover bem forte. Parei embaixo de um ponto de ônibus para colocar a capa de chuva e acendi um cigarro. Olhei o celular e já eram 20h. É raro encontrar alguém caminhando nesse horário, pois todos já estão estabelecidos em algum lugar, jantando e se preparando para dormir. Comecei a analisar a situação e lembrei de toda a movimentação que eu havia feito, há alguns meses, para me despedir de todos os meus parentes, pois eu desconfiava que não voltaria do Caminho de Santiago vivo. É, meu amigo, acho que sua hora chegou. Liguei aos meus pais, explicando porque ainda não havia descansado, e disse que enviaria um SMS assim que chegasse em Cacabelos, o que talvez demoraria, pois a chuva estava forte e eu andaria em passo bem lento. Disse que os amava, e desliguei. Eles nem desconfiavam que eu estava me despedindo. Fumei mais um cigarro, tomei coragem e dei o primeiro passo ao meu destino.
Ritual de Passagem
Por aqui chamam a tempestade de tormenta, e eu achei muito apropriado para aquele meu momento. Ao atravessar a ponte por cima da rodovia, o vento estava tão forte que quase arrancou minha capa. A água gelada trincava meus doloridos pés, a dor não me permitia caminhar mais rápido, e a chuva apertava cada vez mais. Em certo momento, eu era o ponto mais alto dentro de um vinhedo, e raios caíam com uma frequência desesperadora. Coloquei o cajado para baixo, e caminhei devagar enquanto chorava. Devo ter rezado um terço inteiro, de tanto medo que eu sentia. Medo por ser a coisa mais insignificante do Universo, um pontinho irrelevante frente ao infinito, algo que não faria falta a ninguém se um raio fritasse meus miolos. E eles estavam por toda parte. Chorava imaginando o que eu sentiria durante e depois da descarga. Imaginava os primeiros peregrinos da manhã encontrando o meu corpo queimado logo à frente, achando a dog tag no meu pescoço e ligando aos meus pais. Minha vida toda passava na minha frente enquanto eu chorava e blasfemava a Deus por aquela minha expiação. Vai, coragem, joga logo um raio na minha cabeça! O que está esperando? Eu não sou nem um grão de areia comparado ao tamanho do Universo! Qual o motivo para eu passar por tudo isso, se não poderei contar a ninguém? Acaba logo com isso! Andei olhando para meus pés rastejando na lama, absurdamente doloridos, e chorava a cada passo no escuro, esperando o fim… Depois de um tempo, olhei para cima e vi uma cena quase impossível de descrever: era como um quadro do Van Gogh: as nuvens negras da tempestade em formato espiralado, misturadas com nuvens alaranjadas, róseas e vermelhas, anunciando o pôr do sol, clareando um pouco o horizonte, o céu azul escuro ao fundo e um anil como tela para aquele movimento das nuvens. Foi aí que comecei a sorrir e agradecê-lo por toda Sua obra, as fantásticas visões da tempestade que eu via sem poder fotografar para não estragar a câmera, e rezei agradecendo pela minha vida, por meus olhos, ouvidos, pernas, pés e saúde, por estar ali naquele momento, por aquela grande oportunidade, por todos que eu amo e por todos que me amam, me amarão e se importarão comigo. Esta foi uma das jornadas mais intermináveis e desafiadoras da minha existência. Algo morreu ali, sim, mas algo renasceu muito mais forte dentro de mim. A chuva parou. Anoiteceu. Eu andava sozinho, por uma estrada escura a caminho de Cacabelos, agora rezando para nenhum carro me atropelar. Estava realmente perigoso, mas eu não estava com medo, apenas queria estar vivo para colocar essa experiência no papel.
Cheguei acabado ao albergue de Cacabelos, com milhares de novos “cacabelos” brancos, não conseguindo quase colocar meus pés no chão. Encontrei Dario e Karin, fiz uma longa massagem nos pés, tomei uma bela ducha e comi o pão recheado que por sorte eu havia comprado em uma charmosa panadería em Fuentesnuevas. Antes de dormir, absurdamente cansado, percebi que havia sido abençoado. Me disseram que a tempestade que peguei foi de granizo, e que destruiu uma porrada de lugares entre Camponaraya e Cacabelos. E eu não fui atingido. Eu fui presenteado com a minha vida. E eu aprendi a me amar como nunca me amara desde que nasci.