Dia Vinte e Seis
Acordei um pouco tarde e, como sempre, fui um dos últimos a deixar o albergue. Me despedi das simpáticas ruas de Rabanal del Camino e comecei a pensar apreensivamente na primeira passagem do dia: Foncebadón, o “pueblo fantasma”. Há a lenda de que um cigano apareceu por lá, durante a Inquisição, pedindo abrigo em uma noite fria e, além de ninguém recebê-lo, resolveram expulsá-lo de lá. Isso acabou virando linchamento e morte na fogueira. Antes de morrer, ele lançou a maldição de que ali ninguém mais procriaria, que o pueblo iria morrer lentamente e suas ruínas seriam tomadas pelas trevas. Li muitos relatos em sites e livros de pessoas atacadas por cães selvagens por lá, então estava me preparando psicologicamente para o que eu poderia enfrentar. Pelo menos a paisagem até lá era bonita.

Ao chegar em Foncebadón, fiquei meio decepcionado. Há muitas ruínas, mas você vê rede elétrica, bar e até um albergue! Não senti nenhuma energia negativa, e não fui atacado por nenhum cachorro. Aliás, os cachorros da Espanha são muito tranquilos, até agora, dóceis e bem simpáticos. [NOTA] Se em 2006 eu tive essa sensação, hoje talvez você nem perceba as ruínas, pois encontrei neste site informações de CINCO albergues e dois hotéis por lá, fora as outras reformas. Parece que Foncebadón está ressurgindo das cinzas.

Quase chegando na Cruz de Ferro, conheci Dario, um italiano de quarenta e poucos anos muito novo para ter cabelos tão grisalhos. Pedi a ele que tirasse uma foto minha ao lado da cruz e, quando subi o monte de pedras soltas, me liguei onde estava e senti uma energia tão boa que comecei a chorar que nem uma criança.

Ao descer do monte, tirei a mochila para pegar a pedra que eu havia trazido do Brasil. Diz a lenda que, ao jogar uma pedra que trouxe de sua casa aos pés da cruz, você se livra de todos os pecados e males da sua vida, e caminha renovado para uma nova vida. Rezei e transferi para a pedra tudo o que me angustiava, e pedi para que me tornasse uma pessoa melhor, livre de culpas e medos inexistentes, mágoas, decepções, defeitos e tudo de mal que houvesse em minha vida. Depois de atirá-la aos PÉS da cruz (e não na cruz, como minha irmã havia zoado, me chamando de blasfemo), me senti muito bem, as dores dos meus pés aliviaram, minhas costas doeram menos, e a mochila pareceu muito, muito mais leve. Chorei de felicidade por quase mais 1 km.
Parei em Manjarín para almoçar próximo ao famoso refugio de peregrinos Los Templarios, de Tomás Martínez, o hospitaleiro e antigo peregrino que sentiu-se convocado pela Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão em Ponferrada e, desde então, anda vestido como um cavaleiro templário e luta pelo bem-estar dos peregrinos no Caminho de Santiago de Compostela.
Continuando meu trajeto do dia, me apaixonei por El Acebo, um pueblo super charmoso incrustado na montanha, com suas belas casas de pedra com telhados azuis. Entrei em um bar que era uma mistura de saloon com museu do peregrino e experimentei a tão famosa sidra da região.
Cheguei em Molinaseca com os pés em frangalhos, desesperado e andando muito devagar. Acabou a cidade e NADA do albergue… Fiquei puto. Meus pés doíam muito, e para cada morador que eu perguntava onde era, dizia que faltava andar somente 200 m, daí quase 1 km depois lá estava ele. Isso é um pequeno problema, no Caminho: a maioria dos albergues estão no final da cidade – ok, é muito estratégico para a saída, no dia seguinte –, mas é horrível para quem chegou cansado de um longo dia, principalmente quando você precisa voltar mais 1 ou 2 km para achar um supermercado.
Lá encontrei Karin, Dario, outras pessoas conhecidas que não lembro o nome, e Leen, que estava indo à Ponferrada encontrar sua amiga inglesa. Mudaram os planos, então ela não precisaria mais voltar à León, e eu fiquei feliz. Coloquei todas as minhas roupas para lavar e a secadora dessa vez funcionou perfeitamente. Foi ótimo, pois choveu a noite toda e eu não teria nada seco para amanhã. Depois disso fiz uma sopa e dormi ouvindo a chuva.
1 Comment