Dia Vinte e Dois
Me atrasei um pouco para sair do albergue de Mansilla de las Mulas e por sorte um dos pares de meias secou. Pendurei as outras para fora da mochila (uma prática muito normal entre os peregrinos, acredite, por isso sempre é bom ter uns alfinetes de segurança) e comecei a andar. Saquei o kazzoo e fui tocando até o próximo pueblo, para passar o tempo.
Parei em Puente Villarente para tomar café e tirar um pouco a papete. Meus pés doem. Muito. Se a recepção em León for boa, ficarei um dia por lá para descansar. Depois de Burgos, estou com trauma de cidades muito grandes…
O caminho é monótono novamente. Uma estrada pavimentada à direita, a estrada de pedras picadas ao centro e árvores à esquerda. A mesma interminável reta, ad aeternum, como no inferno. Estas são as Mesetas, o grande planalto do norte da Espanha, e praticamente toda Castilla y León é assim. Se você não gosta de passar muito tempo a sós com a sua consciência em lugares desse tipo, garanta sempre uma companhia agradável para conversar, porque senão você vai sofrer. 😀
Finalmente cheguei em León e me senti realmente bem. Uma cidade grande, mas com espírito e energia infinitamente melhores que Burgos. Paixão à primeira vista. As setas estavam ali, sempre visíveis, as pessoas te olhavam como um peregrino (pois sabiam o que você estava fazendo) e respondiam educadamente às suas perguntas, e acabei chegando em um albergue quase fora da cidade. Parecia uma escola, de tão grande. Quartos espaçosos, com apenas 4 beliches, um banheiro gigante, que parecia vestiário de clube e, o mais importante: não havia hora para retornar, então eu podia curtir a minha noite de descanso sem me preocupar com a hora. Tomei um belo banho e saí para conhecer a cidade.
Perguntando aqui e ali, consegui chegar ao Barrio Húmedo, como chamam a parte velha da cidade. Que maravilha! Dá vontade de mudar definitivamente para cá hoje mesmo. Ao encontrar a ruela que dava à Catedral de León, tive uma visão das portas do paraíso. Ela deveria figurar entre uma das Maravilhas do Mundo. Por dentro, mais surpresas: cada buraquinho que vemos por fora, por dentro é um detalhado e colorido vitral. É difícil não ficar de queixo caído com tamanha beleza. Fiquei por lá umas duas horas, entre percorrer cada centímetro dos infinitos detalhes de vidros coloridos e um cultural passeio pelo museu.
Passeando pelos arredores, vendo as pessoas e os cafés da avenida principal, encontrei Dani e Inez, que conheci em Bercianos. Eles estavam esperando uns amigos, e daí chegaram Gemma, Karin e Peter, o alemão que conheci em Terradillos de los Templarios. Passeamos um pouco e paramos em um bar tradicional para comer as tapas, as nossas porções. Experimentamos a famosa cecina de la vaca, um tipo de presunto curado, só que de carne bovina (a cecina de León é de carne bovina, mas também existem em outras regiões versões com carne de cavalo ou cabra), gambas al ajillo (camarões ao alho), lomo de cerdo asado (lombo de porco assado) e outras coisas deliciosas. Claro que quando chegou a conta levamos um “tapa” na cara, pois ficou bem superior à nossa humilde rotina de peregrinos, mas era uma noite de descanso, então rimos e continuamos o passeio.
Dali voltamos à praça da Catedral para vê-la à noite. Claro que era a coisa mais linda do mundo, e claro que havia acabado o filme da minha máquina e o rolo novo estava na mochila (é, estamos em 2006 e ainda usamos rolos de filmes, daqueles que mandamos revelar… eu levei uma digital, também, mas claro que a bateria acabou). Chegamos em um bar para tomar umas cervejas e encontramos Colin e Selena, que eu não via desde San Bol (eles pararam lá apenas para descansar e recarregar as garrafas d’água, e acabaram perdendo toda a festa e o ritual da queimada). Mais conversas e cervejas e risadas e passeios e acabamos entrando em um tipo de boate que tocava salsa y ritmos brasileños. A vantagem do álcool é que você esquece que seus pés estavam doendo em virtude dos vinte e dois dias de caminhada e acaba requebrando sem culpa na salsa.
Cada um ia para um lado, então ajudei Gemma a encontrar o hotel dela com o meu mapa e comecei a longa jornada até o meu distante albergue. Descobri que o albergue municipal fica no Barrio Húmedo, então amanhã eu vou transferir o “acampamento” para lá. Sorte que eu tinha um mapa, senão teria que dormir na rua, pois mesmo andando o caminho era cheio de voltas. A noite gelada fez lembrar que meus pés doíam, então cheguei cambaleando e mancando ao albergue, por volta das 3h.
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