Dia Vinte e Um
Fui acordado por Gemma às 7h, acabei perdendo a hora, de novo. Arrumei rápido minhas coisas e saí do albergue de Bercianos del Real Camino sozinho, às 7h50. O caminho é um pouco chato: uma interminável reta, com a estrada à direita e mudas de árvores à esquerda. É bonito, mas andar 7 km vendo a mesma coisa é um saco. Parei em El Burgo Ranero para tomar algo. Troquei o café con leche por um Gatorade gelado, pois teria mais uns 11 km sem nada pela frente.
Doloroso. Tudo incomodava. Não tenho mais posição confortável para andar sem que sinta alguma dor. Parei e tirei a tornozeleira do pé direito, andei mais, e resolvi estragar alargar a papete e colocar as palmilhas da bota embaixo, para ver se melhorava. Ela ficou bem apertada, mas aparentemente aliviou as dores nos calcanhares. Parei de novo para tirar a tornozeleira do pé esquerdo e colocar uma faixa bem apertada no pé direito. Eu não via a hora de chegar. Para ajudar, a paisagem era a mesma dos primeiros quilômetros do dia: estrada do lado direito, mudas de árvores do lado esquerdo – aquela sensação de inferno continua me perseguindo… já devem ser uns três dias de tédio visual. Nesse para e anda, encontrei por várias vezes o casal de franceses Henrique e Marisa, muito simpáticos e atenciosos, pois sempre que me viam, perguntavam se eu precisava de alguma coisa.
Cheguei finalmente em Reliegos, e tudo o que eu precisava era uma cerveja. Encontrei Rien e o pai e filho que conheci ontem em Bercianos. Ficamos batendo papo por um tempo e almoçamos. Rien me pagou uma cerveja e disse que ficaria por lá, hoje, pois ele resolveu fazer a rota alternativa, ontem – a Calzada Romana (aqui temos um artigo geral sobre as calzadas romanas na Europa e, neste arquivo, entre as páginas 70 e 76, temos o trecho alternativo por onde Rien andou) –, e pelo visto era bem mais chata e cansativa que a minha vista de hoje. Logo depois apareceu Marcelo, que também ficaria por lá. Eu queria andar um pouco mais, mesmo com os pés em frangalhos. Muitas vezes, a gente vai até onde nossos pés conseguem, e outras vezes, vamos até aonde nossa intuição quer, doa a quem doer. Coisas do Caminho de Santiago. Eram quase 16h, o sol estava mortal e só um louco andaria numa hora dessas. Prazer: André.
Cheguei ao albergue de Mansilla de las Mulas e encontrei praticamente todas as pessoas que estavam ontem em Bercianos, mais Shun e outras pessoas, reconhecidas de passagem dos outros dias. Conheci um letonês que terminava sua jornada ali. Saiu a pé, da Letônia, 5 meses atrás. Fez o Caminho até Finisterre e voltou tudo a pé. Chamei-o de louco e ele riu. Disse que depois de andar até Santiago, poderia andar por mais muitos meses, pois não sentia mais dores – afinal, uma hora a gente deve se acostumar com isso. A coisa mais interessante dessa conversa foi quando ele falou do grande desafio que é fazer o caminho de volta. Além da dificuldade de encontrar as setas, que estão invertidas, ele disse que parecia literalmente andar contra a corrente: a energia para se chegar em Santiago de Compostela é tão forte, que fazer o sentido contrário causa o triplo do cansaço.
Depois disso tomei banho, lavei as roupas e jantei. Enquanto esperava as roupas secarem, atualizei meu diário. A secadora devia estar com defeito, pois a roupa saiu úmida demais e eu estava sem nenhuma moeda de € 1,00 para acioná-la novamente. Adaptei as cordas elásticas na pilastra do beliche e torci para que pelo menos um par de meias secasse até amanhã.
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