Dia Quinze
Saí de Burgos acompanhado de Bethany, uma americana que havia conhecido há uns dois, três dias (e com tanta conversação em inglês, vou voltar craque pro Brasil). Logo no começo da caminhada deparamos com a cena da foto que abre essa publicação: uma floresta em itálico, inclinada pela força do vento. Durante a conversa, ela disse que era do Texas, mas estava morando em Nova York. Seu pai cantava no coral de uma igreja e participava de campeonatos entre outros corais, daí do nada ela começou a cantar Ave Maria em latim.
Paramos em Rabé de las Calzadas para comer alguma coisa na rua (quando falo “comer na rua”, é na rua mesmo, sentamos em uma calçada ou escadaria e comemos). Como uma autêntica americana, ela andava com um pote gigante de manteiga de amendoim na mochila. Nisso apareceram por lá Gemma, uma holandesa que eu já via desde Roncesvalles, Manoel, de Madri, que conheci em Zubiri (que me passou um site interessante sobre o Caminho de Santiago) e, claro, outras pessoas que você conhece de vista, mas nunca sabe ou lembra o nome… é muita gente pra minha cabecinha lembrar. Durante esse descanso resolvemos cantar um pouco, daí Bethany puxou I Feel Good, enquanto eu fingia que o kazzoo era um sax.
Continuamos andando por uma estrada de terra batida cercada de feno por todos os lados. O vento, que não parava de nos empurrar para o oeste, também seguindo as setas amarelas, formava ondas no feno como se fossem ondas do mar, um efeito maravilhoso. Em certo momento, o campo de feno era tão distante que parecia mesmo a linha do horizonte em alto-mar (foto abaixo). Largamos as mochilas e começamos a correr que nem uns retardados no meio do feno, fingindo que estávamos pegando umas ondas para aliviar o calor. Nessa, uma inglesa passou por nós e começou a rir quando fingimos que estávamos dando braçadas. Ela parou para conversar com a gente e Rasmus apareceu também. Continuamos andando juntos, Rasmus ao violão e eu com o kazzoo.
No meio do nada, avistamos uma plaquinha indicando uma fuente. Estava um calor dantesco, e nossa água das garrafas estava acabando. Resolvemos andar até lá e encontramos um lugar surreal: Arroyo San Bol. Uma casa estranha, com uma cúpula semelhante a de uma igreja, uma bandeira com PACE escrito entre as cores do arco-íris, uma piscina e nada mais. Dois loucos que estavam dançando uma música italiana nos receberam. Perguntamos do hospitaleiro, e eles disseram que não havia hospitaleiro. Achamos estranho, mas depois de muita conversa descobrimos que haviam quatro: Virgilio e Giulio, os italianos que nos receberam, um húngaro e uma espanhola. Encontrei já instalados Gemma, Robert, outro reencontro do Fellowship of the Camino, e uma francesa que não lembro o nome. Depois chegaram mais pessoas, entre elas Karin, também do Fellowship.
Somente à base de donativos, a casa sobrevive e nos provém de bom vinho e uma lauta refeição, que pede a ajuda de todos para a preparação. Na sala redonda, com a cúpula pintada como se fosse um céu estrelado, além das pinturas malucas tínhamos à nossa disposição vários instrumentos: violão, tambores parecidos com atabaques, flauta transversal e até um didgeridoo – um tubo australiano de mais ou menos 2 metros, que faz um som bem grave.
Não havia banheiro. Logo, NÃO HAVIA DUCHA! Um cano de água que alimentava a piscina era a nossa reserva de água potável. A piscina era bem gelada, por causa da água de montanha. Por outro cano, caía água para fora, a fim de circular a água da piscina e funcionar como torneira para lavar roupa e tomar banho. Frio. Três dias sem banho já seria sacanagem, né? Tomei um ridículo banho-de-gato – porque essa área era praticamente aberta a quem quisesse ver –, mas pelo menos lavei um pouco minhas partes vitais e, finalmente, troquei de cueca! \o/
Começamos a preparar o jantar. Ajudei a cortar as batatas enquanto tomávamos vinho e dávamos risadas. Um menu salutar: batatas assadas, arroz, tortilla, salada de alface, tomate e milho, ervilha refogada, jamón picado e salsichas fritas. Comemos muito e depois continuamos a tocar na sala. Peguei o tambor e não larguei mais. A galera me elogiou, dizendo algo como: só podia ser brasileiro pra tocar assim… hehehe.
Depois de um tempo, os hospitaleiros falaram para tocarmos lá fora um pouco, até anoitecer. Lá montaram um narguilé com um fumo aromatizado com pera, muito suave. Assim que anoiteceu, eles nos chamaram para dentro, para a surpresa da noite: o Ritual da Queimada. Pediram para sentarmos ao redor da mesa, e apagaram as luzes. Giulio começou a tocar a flauta transversal, eu e Rasmus começamos a acompanhar com os timbales e Karin começou a dedilhar o violão. Só faltava a Karen para o Fellowship ficar completo. O húngaro estava de pé, com um caldeirão à sua frente. Pegou a vela que iluminava a sala e aproximou a chama da concha que tirou do caldeirão, colocando fogo em seu conteúdo e apagando a vela. Tudo escuro, somente a chama azul e o húngaro fazendo movimentos com o líquido incandescente. De vez em quando, Virgilio e Mapi (a espanhola) levantavam, faziam um passe de mágica e jogavam algo na chama do caldeirão que explodia como pequenas estrelas amarelas, uma cena muito doida. Virgilio pegou a lanterna e leu o texto do Conxuro da Queimada:
Após os aplausos, o húngaro passou a concha para todos molharem o dedo no conteúdo em chamas. Esquenta um pouco, mas não chega a queimar. Acenderam as velas e distribuíram canecas. O sabor lembra um pouco o Cointreau. Depois que bebemos, Mapi pediu que todos se sentassem e perguntou se eu podia tocar tambor para ela. Tímido, eu disse que sim e apagaram as velas, novamente. Ela subiu em cima da mesa de pedra do centro da sala e começou a girar um malabar com LED (ou zuining ou malabar carioca ou swing poi, o que você preferir) em cada mão ao ritmo do meu tambor, em efeitos muito bonitos com as mudanças alternadas de cores. Depois disso ficamos tocando até as 2h. Essa foi a primeira noite na Espanha que vi a lua e as estrelas, um espetáculo.
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